A vida marinheira é milenar, talvez bem mais do que isso. Nos primórdios da civilização, o homem já navegava sobre troncos e de tanto aprendizado e experiências somadas à sua vida atípica, surgiu a jurássica e pitoresca superstição marinheira. Há séculos, os marinheiros carregam consigo manias, cismas, preconceitos, costumes, tradições e repassam seus medos, receios e ansiedades para seus sucessores, através das gerações.
A lenda conta que Ulisses e seus comandados vedavam os ouvidos para não se atirarem ao mar, seduzidos pelos cantos das sereias. A antiga e suntuosa porta de Hércules, que supostamente fechava o mar, hoje é o movimentado Estreito de Gibraltar, com grande densidade de navios. Os registros bíblicos assentam que o profeta Jonas foi atirado ao mar por ser considerado azarento e causar maus presságios ao barco e à sua tripulação.
Enfim, a superstição sempre fez a diferença e ainda faz parte da vida marinheira.
No passado, os navegadores temiam os espíritos e os monstros dos mares misteriosos. Insultavam os deuses quando a sorte não lhes favorecia e pediam clemência durante as grandes borrascas. De fato, eram abnegados, valentes e aventureiros, presos a seus amuletos e por demais supersticiosos.
Jovens marinheiros, de primeira viagem, poderiam ser açoitados e até jogados ao mar, se uma série de fatos sucessivos não favorecesse a aventura da navegação e do descobrimento de novas terras. O marinheiro, em priscas eras, vivia dentro de um mundo desconhecido e praticamente respirava o peso da superstição.
Com o passar dos séculos, muitos mitos e paradigmas foram quebrados e desapareceram. Porém, no mundo civilizado e nos dias de hoje, podemos destacar algumas superstições marinheiras que ainda existem e estão presentes na alma dos marítimos. Então, surgem as perguntas:
O que precisamente podemos dizer sobre superstições marinheiras nos dias de hoje?
O que ainda causa receio e fobias aos navegantes do século 21?
Abaixo, enumeramos alguns preconceitos e superstições bem pitorescas, ainda presentes no dia a dia do marinheiro.
1) Assoviar no passadiço, na ponte de comando, chama vento e, como consequência, mau tempo. Os Comandantes veteranos e, até mesmo, os capitães atuais não suportam essa prática e não permitem o assovio no passadiço, nem mesmo por distração.
2) Pintar banheiro do camarote causa desembarque. O marinheiro que eventualmente pintar ou fizer alguma manutenção no banheiro de seu camarote, muito provavelmente não fará a próxima
viagem.
3) Não batizar passageiros e tripulantes por ocasião da passagem da linha do Equador não agrada a Netuno. O Rei Netuno não gosta e não aprova essa omissão. O batismo na linha do Equador significa que o marinheiro de primeira viagem e/ou passageiro prestou a devida reverência ao Rei dos Mares. Assim, recebe o nome de um peixe e ganha o direito de passagem. Alguns navios, nos anos 1960, eram dotados de fantasias e adereços de Netuno para enriquecer o ritual da passagem do Equador e cumprir essa antiga tradição, que sempre precedia uma grande festa, homenageando os novos peixinhos.
4) Tripulantes e visitantes que levam guarda-chuva para bordo não trazem boa sorte para o navio. Para o marinheiro tradicional, não faz sentido um tripulante portar guarda-chuva, afinal, marinheiro não pode ter medo de água! O Comandante Horácio Alberto Duarte, ao visitar um navio italiano, teve seu guarda-chuva arrancado das mãos por um tripulante exaltado, que
logo atirou o objeto de azar entre o cais e o navio.
5) Navio sem madrinha e sem batismo é risco potencial de acidente. No pensamento marinheiro, o navio não é uma indústria, nem uma máquina qualquer. O navio parece ter alma; ou melhor, o navio vive, respira e tem sentimentos. Existe uma relação especial e bem carinhosa entre o marinheiro e seu navio. A mulher, madrinha nomeada, batiza o navio que também é mulher. Portanto, as duas se entendem. Essa tradição é universal. Por isso, um homem jamais haverá de batizar um navio. Se por acaso, um dia isso acontecer, o “mar vai secar.”
6) Beber muita água barrenta do pique de ré, tanque de aguada na popa, faz com que os tripulantes jamais deixem a profissão do mar. É comum admitir que um tripulante, após ingerir uma boa quantidade de água barrenta, com gosto de ferrugem, do pique de ré, tanque de água doce, situado na popa do navio, fixa os pés na Marinha Mercante e jamais deixa a profissão. Confesso que antes da modernidade de suprir o navio com água de boa qualidade, bebi uma boa quantidade de água enferrujada e já estou no mar há mais de 42 anos. Alguns bebedores de água do pique deixaram a Marinha Mercante, contudo, posteriormente, fizeram reciclagem e voltaram para o mar, pois não há como desafiar a premonição marinheira.
7) Quando a garrafa de champagne não se quebra no costado, por ocasião do batismo, é mau sinal para o navio. A garrafa de champanhe tem que quebrar, para dar vida ao navio. Soubemos que a garrafa não quebrou quando do lançamento do cruzeiro Costa Concórdia. O choque do champanhe no costado representa a primeira palmada, o suspiro da vida; e o líquido derramado, as lágrimas da criança que acabou de nascer. Esse ritual deve ser cumprido com uma bebida de qualidade.
8) Quando um padre visita o navio no porto, para rezar uma missa, significa mau tempo na certa. Parece cômico, mas já tive essa experiência por duas vezes, quando, eventualmente, recebíamos visitas das missões católicas. Os padres visitavam os navios e insistiam em rezar uma missa a bordo para converter os marinheiros pecadores. Bem que tentamos resistir. Mas, certa ocasião, quando escalamos na cidade de Houston, Texas, ficou difícil arranjar motivos para evitar que o padre representante da missão católica Stella Maris rezasse uma missa a bordo.
Depois de muita insistência e desculpas esfarrapadas, o Comandante cedeu e logo após a saída do navio, encontramos pela frente um furacão chamado “Domenica” e corremos tanto para dentro no golfo do México, que na manhã seguinte já estávamos quase na barra de Vera Cruz, México, do outro lado do golfo. E o tal de “Domenica” havia entrado justamente pelo Texas. Talvez, quem sabe, caçando aqueles marinheiros pecadores, não redimidos, que mandaram rezar a missa a bordo.
9) Não colocar a mala no cais quando o marinheiro muda de um navio para o outro no mesmo porto. As vezes ocorre do tripulante receber ordens para ser transferido de um navio para o outro no mesmo porto. Ainda que estes navios estejam bem proximos ou que haja condução para transportar a bagagem, o Marinheiro sempre coloca sua mala no cais para depois erguê-la e seguir para outro navio.
O ato de colocar a mala no cais consolida o seu desembarque e o toque na pedra do porto descarrega todo o peso negativo e os maus fluidos que por ventura ficaram em sua bagagem.
Os mais antigos ainda despedem-se do navio e dos demais tripulantes dizendo. “Me desculpe qualquer coisa. Sobretudo, a principal superstição de bordo, que é universal e, certamente, atinge todas as embarcações em todos os cantos do mundo, ocorre quando o marinheiro não paga devidamente suas contas em terra, quando não paga as garotas corretamente. Nesse caso, o castigo é severo demais e atinge não somente o marujo caloteiro, mas toda a tripulação”
Por exemplo: o navio segue viagem e logo começam a surgir problemas de toda ordem, como: incidentes; acidentes; falhas da máquina; problemas técnicos; problemas pessoais; mau tempo; doenças e outros contratempos sem evidências e sem motivos aparentes. Logo os marinheiros começam a culpar: “alguém não pagou as garotas do cais”. Nesses casos, o castigo vem pesado, trazido pelo vento. E toda a tripulação acaba por pagar a conta. Ao longo de tantos anos de mar, já pude constatar que, na maioria das vezes, os fatos realmente se consolidam, confirmando os preconceitos marinheiros.
Então, fica a pergunta:
Será que existe alguma relação ou força maior que rege a vida marinheira, ou tudo tem sido mera coincidência?
Na verdade, estamos muito longe de uma resposta lógica, mas o coração do velho marinheiro não se engana. Segue com firmeza todas as suas intuições, tradições, convicções e respeita aquelas inexplicáveis superstições que sempre existirão.
Quem comanda nas grandes águas e distribui os ventos é o nosso DEUS soberano. E nós, pobres marinheiros, somos infinitamente pequenos diante de toda essa grandiosidade.
O Mar guarda segredos e jamais vencemos. Ele é que permite a nossa passagem.