Por Tássia Biazon, pesquisadora, e Paulo Sumida,professor do Instituto Oceanográfico da USPSe há um lugar no planeta que ainda é pouco conhecido pelo ser humano, este lugar é o mar profundo, região oceânica que começa no fim da plataforma continental, a cerca de 200 m de profundidade, e chega até quase 11000 m. Explorar “lá embaixo” não é trivial. Para se ter uma ideia, o ponto máximo que algum ser humano já mergulhou, com auxílio do cilindro de ar comprimido, foi a 332 m – recorde do egípcio Ahmed Gabr em 2014. A partir daí, só tecnologias sofisticadas para dar conta desse imenso desafio, como os submersíveis. Entretanto, dentre as quase oito bilhões de pessoas no planeta, apenas cinco atingiram a Fossa das Marianas, o ponto mais profundo dos oceanos (Don Walsh e Jacques Piccard em 1960, James Cameron em 2012 e Victor Vescovo e Kathy Sullivan em 2020). E como é o azul profundo? A luz é escassa a partir de 200 m e a escuridão é total abaixo dos 1000 m. A pressão aumenta 1 atmosfera (1 kg/cm2) a cada 10 m. A salinidade fica em aproximadamente 1028 g/l. A temperatura é baixa e homogênea, em torno de 4ºC. Com exceção de algumas áreas específicas, o oxigênio disponível aos organismos é alto na maior parte do mar profundo. A diversidade de vida é gigantesca: a estimativa é que o número de espécies ainda desconhecidas ultrapasse 1 milhão! Logo, não é à toa quando dizem que o ser humano conhece melhor a superfície lunar do que o fundo do mar.A impressão de que há pouco a ser explorado no fundo do mar é um engano. Composto de um mosaico de ambientes como talude continental, planícies abissais, fontes hidrotermais, exsudações frias, montes submarinos e recifes de corais, o mar profundo é extraordinariamente importante pois abriga uma incrível biodiversidade; esconde riquezas minerais como cobre, zinco, cádmio, chumbo e até ouro e prata; constitui uma importância singular para o clima global; realiza o sequestro e a estocagem de carbono e a regeneração de nutrientes; além de mexer com imaginário das pessoas há muito tempo. O maior sistema tridimensional da Terra e o menos conhecido de todos, com cerca de 360 milhões km2 de área e mais de 1 bilhão de km3 de volume. Ao contrário do ambiente aéreo, todo o volume do oceano é ocupado por vida abundante.Em laboratórios no continente ou em alto-mar, cientistas brasileiros realizam importantes pesquisas sobre ecossistemas localizados quilômetros abaixo da superfície azul. E as principais informações obtidas desse até então desconhecido ambiente foram organizadas em um livro que será publicado pela Springer, denominado Brazilian Deep-Sea Biodiversity (“Biodiversidade do mar profundo brasileiro”, em tradução livre).“O oceano profundo é o ecossistema mais amplo da Terra”, é a primeira frase do seu prefácio, que incita a curiosidade sobre o que está guardado em tais profundezas. Com exclusividade, o livro retrata a biodiversidade existente em diferentes habitats de mar profundo da margem continental brasileira, aspectos da sua conservação, as ameaças que vem sofrendo e outras potenciais que poderão ser importantes no futuro não tão distante. Ele foi editado por Paulo Sumida, professor titular do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, Fábio De Léo, pesquisador da Ocean Networks Canada, e Ângelo Bernardino, professor associado da Universidade Federal do Espírito Santo.Dedicada principalmente a cientistas e pós-graduandos, a obra inédita poderá ser utilizada por alunos da graduação ou qualquer público interessado no fundo do mar. Para sua confecção, foi realizada uma revisão da literatura científica disponível sobre a biodiversidade brasileira de profundidade, algo pioneiro, visto que não há análises extensivas sobre essa temática. Expandindo o alcance dos dados produzidos nas últimas duas décadas, muitos dos quais estavam disponíveis apenas em português, o livro é o primeiro que descreve a biodiversidade brasileira de mar profundo para uma audiência internacional e, certamente, será um marco para a oceanografia nacional.A obra, composta de oito capítulos e escrita por 27 autores em cerca de dois anos, contempla textos com excelente conteúdo e diversas ilustrações e aborda temas variados como biodiversidade bentônica, circulação oceânica, cânions submarinos, impactos humanos, recifes de corais, microrganismos e peixes, ecossistemas quimiossintetizantes e recursos vivos e não vivos nas águas profundas brasileiras.A ideia para escrevê-la partiu de um convite do professor Alexander Turra, também do IO-USP e coordenador da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano, editor da série de livros denominada Brazilian Marine Biodiversity (“Biodiversidade marinha brasileira”, em tradução livre). Segundo Turra, “essa série é publicada pela Springer e traz para uma audiência mundial o conhecimento sobre a biodiversidade marinha brasileira, em especial sobre os ambientes bentônicos costeiros estudados pela Rede de Monitoramento de Habitats Bentônicos Costeiros (ReBentos). E, embora o mar profundo não seja um habitat costeiro, pouco conhecemos sobre este imenso e importante ambiente e por isso foi incluído na série”.O livro foi elaborado sem financiamento direto, mas projetos custeados ao longo dos anos por agências federais, estaduais e privadas possibilitaram a obtenção de informações para que ele se tornasse uma realidade – inclusive, a ciência oceanográfica é uma das áreas que mais exigem recursos. De forma semelhante, essa série da Springer é fruto do fomento à pesquisa pelo CNPq, Fapesp, Capes e Finep no âmbito da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Mudanças Climáticas, aos quais a ReBentos está vinculada.Enquanto ainda há muito o que ser estudado sobre a biodiversidade da margem continental brasileira, só aumentam os interesses industriais e comerciais sobre recursos vivos e não vivos fornecidos pelos ecossistemas de mar profundo, que envolvem desde pescado e produtos biotecnológicos até metais para uso na indústria de alta tecnologia!Em algumas áreas profundas ao largo do litoral brasileiro há concreções metálicas que crescem no formato de “batatas” no fundo abissal, os nódulos polimetálicos, e outras que possuem formato de placas, mas que se desenvolvem sobre montanhas submarinas, as crostas cobaltíferas. Essas estruturas crescem lentamente, na taxa de 1 milímetro em 1 milhão de anos, e são ricas principalmente em ferro e manganês. Contudo, encontram-se outros metais mais raros e de extrema importância para a indústria tecnológica “verde”.Tais metais, como o telúrio e outros elementos conhecidos como terras raras, são usados na fabricação de baterias mais eficientes, monitores, turbinas eólicas – ou seja, tudo o que a sociedade está consumindo com cada vez mais intensidade. Como as minas terrestres de tais elementos estão começando a se exaurir, a tecnologia para exploração em mar profundo já está madura e as quantidades existentes lá são muito maiores do que em minas terrestres, a busca por tais elementos nessa fronteira marinha aumentou.Com a exploração do fundo do mar brasileiro, que é altamente heterogêneo, pode haver impacto em uma variedade de habitats em escala e intensidade ainda indeterminadas. “A falta de conhecimento sobre a biodiversidade e os processos oceanográficos que governam os ambientes de mar profundo dificulta a tarefa de promoção do desenvolvimento sustentável”, ressalta Turra.Apesar de sua imensa costa, onde está a maior parte da população, o Brasil sempre foi um país voltado para o interior. É necessário mostrar que grande parte (ou a maior parte) da sua riqueza econômica e cultural passa pelo mar. A literatura produzida no próprio país é escassa, sobretudo quanto ao mar profundo. Que este livro chame a atenção da sociedade e de instituições para a importância do oceano e do fomento das pesquisas oceanográficas, conforme preconiza a Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável.fonte: https://jornal.usp.br/
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